“Hoje, não se afirma com a
mesma tranquilidade do meu tempo de menino que haver pobres é a vontade de
Deus, que eles não têm as mesmas necessidades dos abastados, que os empregados
domésticos não precisam descansar, que só morre de fome quem for vadio e coisas
assim. [...] Nas caricaturas dos jornais e das revistas o esfarrapado e o negro
não são mais tema predileto das piadas [...]. Do mesmo modo, os políticos e
empresários de hoje não se declaram conservadores como antes, quando a
expressão classes conservadoras era um galardão.”
Antônio Candido
(Direito à literatura, 1988).

Estamos vendo no Brasil e
em outros países uma expansão mundial das guerras culturais que tomaram os
Estados Unidos a partir do final dos anos 1980. A antiga polarização entre uma
direita liberal que defendia a meritocracia baseada na livre iniciativa e uma
esquerda que defendia intervenções políticas para promover a justiça social
passa a ser não substituída, mas crescentemente subordinada a um novo
antagonismo entre, de um lado, um conservadorismo punitivo e, de outro, um
progressismo compreensivo.
Costuma-se atribuir a James
Hunter a precisa identificação do fenômeno e a difusão do termo “guerras
culturais” para se referir ao processo pelo qual temas como o direito dos
homossexuais, a legalização do aborto, o controle de armas e a legalização das
drogas passaram a ganhar proeminência no debate político americano no final dos
anos 1980, opondo “conservadores” a “progressistas”. Para ele, essa nova
polarização dividia o espectro político de outra maneira, opondo ortodoxos ou
conservadores, de um lado, e progressistas, de outro. Os conservadores se
definiriam por um “compromisso com uma autoridade moral externa definida e
transcendente”, e os progressistas, por uma autoridade moral “caracterizada
pelo espírito da era moderna, um espírito de racionalismo e subjetivismo”.
Num influente livro de
1996, o linguista George Lakoff concordou com Hunt que o novo antagonismo que
se via nos Estados Unidos opunha visões de mundo baseadas em concepções da
autoridade moral, mas definiu essa oposição de maneira um pouco diferente.
Apoiado na teoria da centralidade das metáforas para a formação dos conceitos,
ele notou que as guerras culturais se assentavam no confronto de duas metáforas
familiares para a sociedade, isto é, os dois discursos olhavam para a sociedade
como uma grande família: uma família com pai rigoroso e uma família com pai
carinhoso – e, para cada visão da sociedade como família, esse pai metafórico
imporia uma ordem moral. Assim, na perspectiva conservadora, teríamos uma ordem
moral punitiva e disciplinar e, na progressista, uma ordem compreensiva.
Apenas levando em conta
essas duas concepções da ordem moral entenderíamos, por exemplo, por que tanto
conservadores como progressistas acusam uns aos outros de incoerência em
relação à proteção à vida pelas posições que assumem com respeito ao aborto e à
pena capital. Se a proteção à vida é um princípio religioso supremo, por que
conservadores que condenam o aborto frequentemente defendem a pena capital? Se,
para os progressistas, a proteção à vida é um direito humano, por que se
mostram tão insensíveis à morte dos fetos humanos decorrente dos abortos? Se
olhamos para essa divergência não do ponto de vista do princípio da proteção à
vida, mas do ponto de vista da lógica da ordem moral, entendemos então que não
se trata de incoerência de lado a lado, mas fundamentalmente de como cada
discurso trata o erro: se a mulher que fez sexo fora do casamento deve ser
punida, assumindo a responsabilidade pela gravidez, ou ter as circunstâncias de
sua vida levadas em conta para escolher outro caminho; se o criminoso deve ser
duramente punido com a pena capital ou ter a oportunidade de se reabilitar.
Na literatura não há
unanimidade sobre o que teria dado início às guerras culturais. Elas parecem
ser uma reação ao questionamento político das normas sociais pela contracultura
dos anos 1970 ou à fratura das identidades coletivas proposta pelos novos
movimentos sociais e pelo discurso pós-moderno. Seja como for, parece claro que
quem reorganizou o discurso político nesses termos foram os conservadores e que
os progressistas ainda precisam se adaptar ao novo terreno de disputa
discursiva.
A relação entre discurso
moral e político não é nova. No final do século XIX e início do XX, os liberais
já utilizavam um discurso moral que justificava a miséria dos trabalhadores
pela indolência. Antes, porém, o discurso moral era instrumentalizado pelo
político, e agora parece que ocorre o contrário.
Embora não exista identidade nem mesmo correlação
necessária entre o discurso liberal e o conservador, de um lado, e o discurso
socialista e o progressista, de outro, essas articulações discursivas são
preponderantes. Assim, após o início das guerras culturais, vimos uma mudança
de natureza do discurso liberal. Desde o pós-guerra, o discurso liberal tinha
assumido a forma de um discurso de moderação e bom senso ao qual só podiam
aspirar aqueles que tomavam os fundamentos da sociedade atual como pressuposto
e tratavam as questões sociais e econômicas como prosaicos problemas de
administração. Após as guerras culturais, ele retomou um caráter de ódio e
desprezo de classe que trata os trabalhadores como indolentes que merecem ser
punidos com a pobreza pela falta de industriosidade, capacidade de poupança e
empreendedorismo. Pelos mesmos motivos, toda ação social do Estado é vista por
esse discurso como complacência socialista com a incompetência e o comodismo.
O inverso acontece com o
discurso socialista. Se no antigo quadro discursivo o bom senso e o equilíbrio
caracterizavam o discurso liberal, o discurso socialista que colocava em xeque
os fundamentos do sistema concorrencial de mercado era radical por sua própria
natureza e era desqualificado pelo establishment como extremista e
irrazoável. Já no novo quadro discursivo, no qual prevalece o discurso moral, o
caráter compreensivo e solidário do progressismo sugere que o discurso
socialista adote o equilíbrio e o bom senso trazidos pela empatia.
Esse antagonismo moral
redefine as regras do debate político. Há oitenta anos, o fabiano Harold Laski
defendia a ideia de que a penetração política e intelectual do socialismo
advinha de sua capacidade de explorar a contradição entre liberdade e igualdade
presente no discurso liberal, isto é, liberais e socialistas compartilhavam os
valores de liberdade e igualdade, e o pensamento socialista ascendeu
demonstrando que a igualdade de poder concorrer no mercado era uma formalidade
jurídica sem substância. Assim, o debate clássico que opunha liberais e
socialistas tinha um fundamento comum de valores que foi erodido pela cisão em
visões morais de mundo incomensuráveis.
Resta a pergunta sobre o
que devemos nós, socialistas e progressistas, fazer neste cenário de profundo
antagonismo moral e de classe. Creio que, em vez de lamentarmos a irreversível
ascensão do discurso moral, devemos jogar, em nossos termos, o novo jogo do
debate político. No entanto, isso exigirá empenho em reorientar o discurso e
reorganizar as forças políticas. Não apenas devemos expressar nossa luta pela
justiça social num discurso moral caracterizado pela empatia e pela
solidariedade, como também precisamos reorganizar as alianças políticas de
maneira a dar mais centralidade às lutas pelos direitos humanos e pelos
direitos civis, isto é, contra o abuso policial e o encarceramento em massa,
contra a homofobia, o sexismo e o racismo.
O ônus do ajuste é nosso. Os conservadores saíram
na frente.
Pablo Ortellado
Ativista e professor da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades da USP. Coautor dos livros Estamos vencendo! Resistência
global no Brasil (Conrad, 2009) e Vinte centavos: a luta contra o
aumento (Veneta, 2013).
Ilustração: Mídia Ninja
Referências bibliográficas
HUNTER, J. Culture wars: the struggle to
define America. Nova York: Basic Books, 1991.
LAKOFF,
G. Moral politics: what conservatives know that liberals don’t. Chicago:
University of Chicago Press, 1996.
LASKI,
H. The rise of European liberalism: an essay in interpretation. Déli: Aakar, 2005.


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