O livro censurado de Henry Miller
“Pesadelo Refrigerado”, de Henry
Miller, é um livro que ficou muito tempo censurado e, quando veio à tona,
mostrou a América virada pelo avesso num tour radical. De olho clínico e com
narração enxuta, o autor leva o leitor para o núcleo do drama — a formação de
um país voltado para a dor e que tenta em vão mascarar essa evidência

A função civilizatória da arqueologia
não é o deslumbramento provocado pela precocidade dos ancestrais, mas enxergar
o que qualquer civilização esconde quando for comparada ao verdadeiro enigma, a
natureza. O que faz o projeto esquecido de uma pirâmide no alto da montanha?
Qual o sentido de uma cidade industrial americana colocada ao lado do Grand
Canyon? Esses eventos poderão revelar toda a fuligem, precariedade, escândalo e
horror que acompanham a modernidade?
É disso que se ocupa Henry Miller no
seu clássico livro de viagens, “Pesadelo Refrigerado” (tradução de José Rubens
Siqueira, Francis, 320 páginas), um trabalho arqueológico que despreza os
vestígios, a não ser que sirvam para provar sua tese sobre a sujeira da
América. Ao detectar a origem do pesadelo — o divórcio entre homem e natureza
no país que despreza a arte e a cultura — ele vai atrás do tesouro verdadeiro
oculto a quilômetros abaixo das aparências: os gênios, anônimos ou simplesmente
desprezados e perseguidos, que fazem a grandeza da sua época e que passam
despercebidos pela brutalidade de uma nação que aposta nas vantagens da guerra.
Esta, já estava desencadeada na Europa na época em que foi escrito o livro, mas
ainda não havia o engajamento, vislumbrado como iminente, do governo Roosevelt,
em 1941.
Miller costuma acertar porque não faz
concessões, como comprovam algumas frases ciscadas (e colocadas aqui em
sequência, para destacar a contundência de suas análises e profecias) no seu
percurso pelo país que o assusta o tempo todo: “Neste mundo, o poeta é anátema,
o pensador um tolo, o artista um alienado, o homem de visão um criminoso. O
pior sofrimento é o que se encontra no próprio coração do progresso. Todo o
mundo branco se transformou em um campo armado. Vamos aprender a aniquilar o
planeta inteiro num piscar de olhos — espere só para ver”.
Diante do pesadelo, que é o país
deserto e insuportável, os gênios pontuam a trajetória do autor envolvendo-o em
passeios, conversas, evidências. Inspirado nas palavras de Swamii Vivekananda,
o primeiro grande difusor das ideias espirituais da Índia no Ocidente e que fez
grande sucesso na virada do século 19 para o 20, Miller aposta nas mentes
ocultas, naquelas criaturas que transformam o mundo e jamais vêm à tona, ou
quando são vistas, todos fingem não enxergá-las.
Assim, convivem no mesmo espaço de
revelações profundas tanto o morador do deserto, homem simples e isolado, que
ensina os arqueólogos sobre os verdadeiros motivos de uma tragédia ocorrida
milhares de anos antes, quanto pintores considerados fundamentais, como John
Marin e Marion Souchon. Revolucionários do som ordenado que mudaram
radicalmente a percepção da música, como Edgar Varèse, são vistos com a mesma
grandeza de um velho mecânico que fez o Buick do autor cruzar infinitos espaços
sufocados por altas temperaturas.
Não se trata, entretanto, de um livro
de viagens exótico ou “esnobe”, como dele disseram na imprensa brasileira. Por
ser radical, por colocar os gênios como milagres que desafiam uma cultura
autodestrutiva, Miller provoca o desconforto habitual da fornalha da sua
escrita. O leitor não faz uma viagem agradável pelas paisagens físicas e
humanas de uma América deslumbrante e aterradora. Não se trata de um livro para
confirmar a hegemonia de algo irreversível ou para entreter quem quer que seja.
É obra de arte, no que isso tem de mais provocador e gratificante. Mesmo
escrito há mais de 60 anos, serve para gerar uma nova visão do país que emergiu
da guerra como se fosse o paradigma de uma civilização futurista e nada mais é,
segundo o próprio Miller, do que o final de um processo que está destinado a
desaparecer, fruto de suas próprias contradições.
“O estilo americano é seduzir o homem
por meio da propina até torná-lo um prostituto”, diz Miller, para não deixar
dúvidas sobre o pseudocharme da civilização hoje vitoriosa no mundo. Ao ser
lido depois que todas as suas suspeitas e certezas sobre o que via se
confirmaram, principalmente na invasão do Iraque, Henry Miller, com “Pesadelo
Refrigerado”, encerra o melhor das profecias, que são as percepções colhidas no
início dos acontecimentos, quando estes se encontram em estado quase latente em
relação ao que poderão desenvolver. A América prestes a entrar na guerra
intensificaria todos os seus erros e disseminaria pelo mundo a adoração pelo
dinheiro. Isso incomodava na época e hoje é mais atual do que nunca.

O que mais encanta no livro é a aguda
visão do escritor dos lugares por onde anda sem os óculos do turista
inconsequente. Debocha dos comentários vazios dos que precisam devorar a
paisagem amparados pela incultura onívora e chama a atenção para o chão púrpura
da hospedaria onde uma turista entediada reclamava do crepúsculo, suave demais
para quem precisava enxergar o sol como se fosse uma gigantesca omelete.
Literatura de combate sem ser de
guerra, este é um livro que escancara a individualidade necessária nesta época
em que tudo se parece, como se estivéssemos numa viagem tediosa por lugares
famosos. O que é sagrado para Miller é essa abordagem única de um espírito
livre, que, por sua altivez e profundidade, nos ensina mais do que nos deleita,
e nos estoca para uma vida mais sincera e habitada. Sua arqueologia atinge o
coração das trevas e de lá retira algo que está vivo e não se deixa morrer,
mesmo que a guerra pareça interminável.
Leia
um trecho de “Pesadelo Refrigerado”
Foi num hotel em Pittsburgh que
terminei de ler o livro de Romain Rolland sobre Ramakrishna. Pittsburgh e Ramakrishna
— pode haver contraste mais violento? Um é o símbolo do poder e da riqueza
brutais, o outro, a própria encarnação do amor e da sabedoria.
Começamos aqui, então, o rapidíssimo
pesadelo, a cruz em que todos os valores são reduzidos a lixo.
Estou em um quarto pequeno, que deve
ser considerado confortável, de um hotel moderno equipado com todas as últimas
comodidades. A cama é limpa e macia, o chuveiro funciona perfeitamente, o
assento da privada foi até esterilizado depois do último hóspede, se é que se
pode acreditar no que diz a tira de papel que o envolve; sabonete, toalhas,
luz, papel de carta, tudo fornecido em abundância.
Estou deprimido, mais deprimido do que
consigo expressar. Se fosse ocupar este quarto por um tempo considerável,
ficaria louco — ou cometeria suicídio. O espírito do lugar, o espírito dos
homens que fizeram desta cidade o horror que ela é, penetra pelas paredes.
Existe assassinato no ar. Tudo me sufoca.
Há poucos instantes saí para respirar
um pouco. Senti me de volta à Rússia czarista. Vi Ivã, o Terrível, seguido por
uma turba de brutos de focinho. Lá estavam, armados com porretes e revólveres.
Tinham o ar de homens que obedecem zelosamente, que atiram para matar à menor
provocação. Nunca o status quo me pareceu mais horrendo. Este não é o pior
lugar de todos, eu sei. Mas estou aqui, e o que vejo me atinge com força.
Talvez tenha tido sorte de começar meu
tour da América via Pittsburgh, Youngstown, Detroit; sorte de não ter começado
por Bayonne, Bethlehem, Scranton e que tais. Podia não chegar nunca a Chicago.
Podia ter me transformado em uma bomba humana e explodido. Algum astuto
instinto de autopreservação me levou a virar para o sul primeiro, a explorar os
estados da União chamados de “retrógrados”. Posso ter me entediado a maior
parte do tempo, mas pelo menos tinha paz. Será que não vi sofrimento e miséria
no Sul também? Claro que vi. Existe sofrimento e miséria por toda parte neste
vasto país. Mas há tipos e graus de sofrimento; o pior, em minha opinião, é o
tipo que se encontra no próprio coração do progresso.
Neste momento, falamos da defesa de
nosso país, das instituições, de nosso modo de vida. Tomamos como certo que
essas coisas precisam ser defendidas, sejamos ou não invadidos. Mas existem
coisas que não deviam ser defendidas, deviam ser deixadas para morrer; existem
coisas que devíamos destruir voluntariamente, com as próprias mãos.
Vamos fazer uma recapitulação
imaginária. Tentemos pensar nos velhos dias em que nossos patriarcas chegaram a
estas terras. Para começar, com certeza fugiam de alguma coisa; como os
exilados e expatriados que estamos acostumados a denegrir e aviltar, também
eles abandonaram sua terra natal em busca de algo mais próximo dos desejos de
seu coração.
Uma das coisas mais curiosas sobre
esses antepassados é que, embora estivessem manifestamente buscando paz e
felicidade, liberdade religiosa e política, eles começaram roubando,
envenenando, assassinando, quase exterminando a raça a que pertencia este vasto
continente. Mais tarde, quando principiou a corrida do ouro, fizeram com os
mexicanos a mesma coisa que haviam feito com os indígenas. E, quando os mórmons
surgiram, praticaram as mesmas crueldades, a mesma intolerância e perseguição
de seus próprios irmãos brancos.
Penso nesses feios fatos porque, enquanto
estava indo de Pittsburgh para Youngstown, atravessando um inferno que vai além
de qualquer coisa imaginada por Dante, subitamente me veio a ideia de que
precisava ter um indígena americano ao meu lado, de que ele devia participar
desta viagem comigo, comunicar-me, em silêncio ou de alguma outra forma, suas
emoções e reflexões. Minha preferência seria ter comigo um descendente de uma
das tribos comprovadamente “civilizadas”, um seminole, vamos dizer, que
houvesse passado a vida nos intricados pântanos da Flórida.
Imagine nós dois parados em
contemplação diante da horrenda grandeza de uma dessas siderúrgicas que
pontilham a ferrovia. Dá quase para ouvi-lo pensando: “Então foi para isso que
nos privaram de nossos direitos de nascimento, levaram nossos escravos,
queimaram nossas casas, massacraram nossas mulheres e crianças, envenenaram
nossas almas, romperam cada tratado que fizeram conosco e nos deixaram a morrer
nos pântanos e selvas dos Everglades!”.
Você acha que seria fácil fazê-lo
trocar de lugar com um de nossos trabalhadores regulares? Que tipo de persuasão
seria preciso utilizar? O que se poderia prometer a ele que fosse realmente
sedutor? Um carro usado para ir trabalhar? Um barraco de tábuas que pudesse, se
fosse ignorante a tal ponto, chamar de casa? Uma educação para seus filhos que
os tirasse do vício, da ignorância e da superstição mas ainda os mantivesse em
escravidão? Uma vida limpa, saudável, em meio à pobreza, ao crime, à sujeira,
à doença e ao medo? Salários mal suficientes para manter a cabeça fora da água
e muitas vezes nem para isso? Rádio, telefone, cinema, jornais, revistas
vagabundas, canetas-tinteiro, relógio de pulso, aspiradores de pó e outros
aparelhos ad infinitum? São essas bobagens que fazem a vida valer a pena? São
essas coisas que nos deixam felizes, relaxados, generosos, compassivos, gentis,
pacíficos e tementes a Deus? Estamos prósperos e seguros hoje, como tantos
estupidamente sonham estar? Algum de nós, mesmo os mais ricos e poderosos, tem
certeza de que nenhum vento contrário arrebatará nossas posses, nossa
autoridade, o medo e o respeito que nos são votados?
Essa atividade frenética que nos mantém
a todos, ricos e pobres, fracos e poderosos, em suas garras — aonde está nos
levando? Ao que me parece, existem duas coisas na vida que todos os homens
desejam e poucos obtêm (porque ambas pertencem ao domínio do espírito): a
riqueza e a liberdade. O farmacêutico, o médico, o cirurgião são incapazes de
nos dar saúde; e dinheiro, poder, segurança, autoridade não fornecem liberdade.
A educação nunca provê sabedoria, nem as igrejas religião, nem a riqueza a
felicidade, nem a segurança a paz. Qual é então o sentido de nossa atividade?
Qual a finalidade disso tudo?
Somos não apenas tão ignorantes,
supersticiosos, perversos em nossa conduta quanto os “selvagens ignorantes e
sanguinários” que espoliamos e aniquilamos ao chegar aqui — somos muito piores
que eles. Nós degeneramos; degradamos a vida que procuramos estabelecer neste
continente. A nação mais produtiva do mundo, porém inapta para alimentar,
vestir e abrigar adequadamente mais de um terço de sua população.
Vastas áreas de solo valioso são transformadas em
deserto por negligência, indiferença, ganância e vandalismo. Dilacerada há
oitenta anos pela guerra civil mais sangrenta da história do homem, até hoje é
incapaz de convencer o lado derrotado do país sobre a correção de nossa causa;
incapaz, como libertadora e emancipadora de escravos, de lhes dar verdadeira
liberdade e igualdade, ao contrário, escravizando e degradando nossos próprios
irmãos brancos. Sim, o norte industrial derrotou o sul aristocrático — os
frutos dessa vitória são agora visíveis. Onde quer que haja indústria existe
feiura, miséria, opressão, tristeza e desespero.
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