As jornadas
de junho de 2013 já foram esquecidas? Produziram algum efeito ou foram castelos
de areia que morreram na praia?
Na época, um
artigo de Demian Melo apontava uma leitura das
jornadas, a busca de uma compreensão, com análise crítica do processo e do
governo do PT frente ao fenômeno das rebeldias que movimentaram o País.
Nenhuma crise cíclica do capitalismo pode ser tomada como causa de uma
onda de rebeliões ou revoluções sociais, quase como se houvesse uma sincronia
no processo histórico entre as flutuações da economia e a luta de classes. Marx
aprendeu, com a experiência da primeira crise global capitalista, ocorrida em
1857-1858, que nem sempre este momento do modo de ser da sociabilidade do valor
coincide com algum tipo de convulsão social (BENSAÏD, 1995: 84). Esperando
ansiosos que uma nova crise de superprodução desempenhasse a função de
desencadear uma nova onda de revoluções, tal como havia ocorrido em 1848, ele e
Engels perderam as esperanças ao perceberem que, pelo contrário, a crise havia
contraditoriamente contribuído para a “monopólio mundial do capitalismo
britânico” (HOBSBAWM, 1982: 104).
Todavia não seria de todo esquemático tomar o início da crise
capitalista de 2008 como de abertura de uma nova situação internacional. O que
aconteceu até agora? Neste ano de 2013, a OIT revelou que até 2015 o número do
desemprego global pode chegar a 208 milhões de pessoas. Em suma, a tragédia
social criada pela lógica incontrolável do capital é bem maior que esse número,
já que nunca devem ser desconsideradas as evidentes sub-notificações comuns
encontradas a esse tipo de projeção, que não pode considerar aqueles que
desistiram de procurar emprego, ou aqueles que estão em empregos extremamente
precários.
No outro lado da fronteira de classe, cerca de trinta trilhões de
dólares foram transferidos das receitas públicas dos Estados para salvar
empresas em dificuldades, enquanto os cidadãos comuns perderam e estão perdendo
seus empregos e suas casas. Recentemente, o Government Accountability Office
(um instituto do congresso dos EUA) descobriu que desde o início da crise só o
Tesouro norte-americano entregou 16 trilhões de dólares em empréstimos secretos
às grandes empresas e instituições financeiras, tanto dos EUA quanto também
estrangeiras (UNITED STATES GOVERNMENT ACCOUNTABILITY OFFICE, 2011). A alegação
dos Estados era que tais medidas seriam necessárias para injetar capacidade de
investimento nas empresas, que voltariam a produzir, gerando demanda,
produzindo novos empregos etc. Em suma, a idéia era ativar a ação anti-cíclica
do Estado para a retomada do crescimento econômico. Só que isto não só não
funcionou, como acabou por gerar a atual fase da crise, cuja metástase vem se
espalhando pelo globo. Afinal, qual seria o resultado desta farra senão o
aumento exponencial das já gigantescas dívidas públicas?
O que se tem agora é uma imensa montanha de dívidas públicas impagáveis,
cujos dados são alarmantes. A dívida federal do governo dos EUA passou de 9,2
trilhões de dólares em 2007 para 14,5 trilhões em 2011, o que corresponde a
100% do PIB. A dívida alcança nos países europeus 63% do PIB da Espanha, 76,5%
na Inglaterra, 81,7% na França, 93% em Portugal, 114% da Irlanda, 120% da
Itália e 152% do Grécia. Além disso, vemos agora ações no sentido de aumentar,
ainda mais, a capacidade de endividamento dos Estados, como nos EUA. Isso tudo
formou uma imensa bolha, ou como Marx chamou no livro III do Capital, uma
montanha de “capital fictício”.1
Além dessa dinâmica da crise, o aumento exponencial do protesto social,
de greves gerais européias (como a de 14 de novembro de 2012, que ocorreu em
vários países ao mesmo tempo), às insurreições de caráter diverso que tomaram
conta do Norte da África desde a queda de Mubarak em 2011, as lutas sociais
voltaram à cena em diversas latitudes. E quem diria que no país que até então
parecia um exemplo de estabilidade na América Latina, uma onda de manifestações
fosse tomar conta das suas principais cidades desde junho de 2013?
O propósito deste artigo é contribuir com alguns apontamentos sobre o
caráter dessas manifestações chamadas genericamente de Jornadas de Junho,
pensando nos desafios colocados para a esquerda socialista brasileira, que há
muito vinha conspirando pelo desabrochar da Primavera.
O Brasil na onda do protesto global?
A entrada em cena do Brasil no cenário do protesto global, como não
poderia deixar de ser, possui enormes particularidades. Em primeiro lugar, a
crise internacional parece estar prejudicando mais fortemente o balanço de
pagamentos, e a desaceleração econômica parece ter chegado de vez. Tomara que
não, afinal, como ensinou Marx, nas crises são os trabalhadores os maiores
penalizados. O próprio ciclo de greves que antecedeu esse período de protestos
de rua, como na construção civil em obras do Plano de Aceleração do Crescimento
(PAC), ou mesmo a heróica greve dos bombeiros no Rio de Janeiro em 2011,
ocorreram quando as condições da economia não eram das piores, ainda que não
fosse a excepcionalidade de um crescimento do PIB na ordem de 7,5%, como em
2010.
De qualquer modo, alguns dados são bem preocupantes. Em 2011 a dívida
pública consumiu 45% do orçamento da União, enquanto que em 2012 essa taxa foi
de 42%, chegando à marca dos 2 trilhões de dólares. Nesse ano de 2013 o índice
tende a permanecer nesse patamar, o que implica numa brutal transferência de
recursos socialmente produzidos e centralizados no Estado para o bolso dos
portadores dos títulos da dívida pública brasileiro, o grande capital. Enquanto
isso, em meio a um cenário turbulento, a equipe econômica do governo efetuou um
corte de 10 bilhões de reais, enquanto as ruas pedem mais educação, saúde e
transportes “padrão Fifa”, ou seja, mais recursos públicos nessas áreas.
Mas é bobagem querer atribuir o estopim do descontentamento popular ao
relativo aumento do custo de vida, como o presenciado neste ano de 2013, apesar
deste elemento poder ser tomado como um entre outros que se combinou na criação
deste cenário.
As razões do descontentamento devem ser buscadas em determinações que se
inscrevem no longo, médio e curto prazo. No longo prazo é fundamental atentar
para a estrutura social desigual que, não obstante tenha sofrido alterações na
última década, ainda faz do Brasil um dos países mais desiguais do mundo. Nessa
mesma temporalidade, cabe lembrar que protestos urbanos desencadeados em torno
à pauta da precariedade do transporte público não constitui algo inédito. Como
bem apontou o Movimento Passe Livre de São Paulo, um dos protagonistas dessas
jornadas,
“Como um fantasma que ronda as cidades deixando marcas vivas no espaço e na memória, as revoltas populares em torno do transporte coletivo assalta a história das metrópoles brasileiras desde sua formação. Os bondes virados, os trens apedrejados, os ônibus incendiados, os catracações, os muros ‘pixados’ com as vozes das ruas, as barricadas erguidas contra os sucessivos aumentos das passagens são expressão da digna raiva contra um sistema completamente entregue à lógica da mercadoria.” (MOVIMENTO PASSE LIVRE DE SÃO PAULO, 2013).
“Como um fantasma que ronda as cidades deixando marcas vivas no espaço e na memória, as revoltas populares em torno do transporte coletivo assalta a história das metrópoles brasileiras desde sua formação. Os bondes virados, os trens apedrejados, os ônibus incendiados, os catracações, os muros ‘pixados’ com as vozes das ruas, as barricadas erguidas contra os sucessivos aumentos das passagens são expressão da digna raiva contra um sistema completamente entregue à lógica da mercadoria.” (MOVIMENTO PASSE LIVRE DE SÃO PAULO, 2013).
No tempo médio, a forma de desenvolvimento encaminhada no país, seguindo
uma tendência global, torna o próprio território das cidades um suporte para o
processo de valorização do capital. Projetos megalomaníacos voltados para o
turismo têm sido uma realidade desde os anos 1970 em várias cidades do mundo.
Projetos como o “Porto Maravilha” na região portuária do Rio de Janeiro, por
exemplo, encontram exemplos similares em cidades como Buenos Aires, Barcelona,
Baltimore entre outras, onde o Estado expulsa populações pobres que habitavam regiões
até então abandonadas pelos poderes públicos e os interesses do capital
privado. Ao mesmo tempo, a especulação imobiliária que se desenvolve a partir
desta lógica de expansão do capital constitui outro fator que tem levado ao
aumento significativo do custo de vida, do mal-estar e da inquietação social no
Brasil.
Localizados também numa longa duração, movimentos populares em torno do
direito à moradia só se intensificaram nos últimos anos, engendrando
experiências notáveis de resistência popular, como no episódio da comunidade do
Pinheirinho em São José dos Campos, impulsionada pela esquerda socialista
(notadamente o PSTU) e que se tornou uma referência nacional de resistência
popular. Não tendo sido o primeiro, mas certamente assumindo uma posição de destaque
face à brutalidade com que a violência estatal (no interesse do grande capital)
expulsou (pedagogicamente) seus habitantes – procedimento onde não faltaram
impulsos eugênicos, como a distribuição de passagens de ônibus para “qualquer
lugar do Nordeste” –, muitos “Pinheirinhos” têm proliferado nos problemáticos
espaços urbanos brasileiros.
Além disso, o projeto de controle policial do território (e, por conseqüência da vida social) tem dado passos consideráveis, especialmente no Rio de Janeiro a partir do primeiro governo Sérgio Cabral (2007), através de ações como a instalação das Unidades de Polícia Pacificadoras, as UPPs (Cf. BRITO & ROCHA, 2013). Não é um projeto para todas as favelas, como já se repetiu ad nauseum, mas para algumas favelas que circundam áreas de interesse do mercado, como aquelas onde existem equipamentos esportivos que se destinarão a Copa e a Olimpíada, além das localizadas na Zona Sul carioca. O índice de violência policial ainda é agravado pelo controle paramilitar que é exercido pelas chamadas “milícias” principalmente (mas não só) na Zona Oeste do Rio.
Além disso, o projeto de controle policial do território (e, por conseqüência da vida social) tem dado passos consideráveis, especialmente no Rio de Janeiro a partir do primeiro governo Sérgio Cabral (2007), através de ações como a instalação das Unidades de Polícia Pacificadoras, as UPPs (Cf. BRITO & ROCHA, 2013). Não é um projeto para todas as favelas, como já se repetiu ad nauseum, mas para algumas favelas que circundam áreas de interesse do mercado, como aquelas onde existem equipamentos esportivos que se destinarão a Copa e a Olimpíada, além das localizadas na Zona Sul carioca. O índice de violência policial ainda é agravado pelo controle paramilitar que é exercido pelas chamadas “milícias” principalmente (mas não só) na Zona Oeste do Rio.
No curto
prazo, podemos tomar algumas elaborações do sociólogo Ruy Braga, de que, em
primeiro lugar, não existe um só grande impulso imediato desse processo de
mobilizações, e na verdade ele responde a várias fontes de insatisfações. Em
primeiro lugar a questão do trabalho. A despeito de ter havido um progresso na
renda e na formalização nos últimos 10 anos, existem hoje condições muito duras
de trabalho, que podem ser medidas pelo aumento do número de acidentes de
trabalho; salários muito baixos – afinal 94% do emprego formal criado nos
últimos 10 ano pagam até 1,5 salário mínimo, ou seja, em torno de R$ 1.000, 00
(mil reais) –, concentrado no setor de serviços, com alta taxa de rotatividade.
Isso tende a aglutinar uma série de insatisfações que se combinam às condições
de vida nas cidades. Como já aludimos acima, as cidades foram sendo
privatizadas ao longo dos últimos 20 anos, e parte significativa da população
não se sente representada no seu modo de vida, morando em periferias muito
distantes, onde o transporte público é extremamente precário, constituindo um
dos grandes problemas das grandes metrópoles (BRAGA, 2013).
Ao mesmo
tempo é inegável a crise de representação política, resultante principalmente
do esgotamento das potencialidades inscritas no projeto do PT que se definiram
a partir do caminho trilhado para chegar no poder, e principalmente da sua
experiência no poder. Por sua vez, a esquerda socialista que se opõe ao governo
(PSOL, PSTU, PCB e outros grupos menores) ainda está aquém de constituir-se uma
alternativa de poder, ainda que não deva ser desprezada sua perseverante
militância nos movimentos sociais, sua inserção nas lutas e algumas de suas
experiências parlamentares. Ao mesmo tempo, alimentada por anos de uma
pedagogia da hegemonia neoliberal, que promove a desqualificação dos partidos
políticos como forma de organização (campanha que germina no terreno fértil da
corrupção-realmente-existente), a rejeição aos partidos políticos (tratados
como agremiações espúrias) penalizou também a esquerda socialista.
Foi também
pelos 20 centavos!
Lugar comum
não ajuda em nada como ponto de partida para o entendimento dos fenômenos
políticos como as Jornadas de Junho, mas não é possível ser honesto na análise
sem reconhecer que as forças políticas organizadas do país foram pegas de
surpresa. Não vai ser a primeira nem a última vez que ondas de manifestações
emergem em sociedades onde tudo parecia calmo. Mas se engana quem pensa que,
frente à surpresa, forças políticas organizadas não tomaram posições decisivas
nesses eventos.
Para o bem e para o mal. Para o bem, se não
perdermos de vista que os protestos contra os aumentos do custo do transporte
público não surgiram do nada. Perseverantes quadros dos movimentos estudantis
ou formados por estes, como o Movimento Passe Livre (MPL) de São Paulo (com uma
sólida elaboração sobre o transporte público como um direito), estiveram por
detrás do processo que iniciou essas mobilizações cujo ponto de origem pode ser
localizada na “Revolta do Buzu” (Salvador, agosto/setembro de 2003), com a
formação do próprio MPL no Fórum Social Mundial de 2005, além de um ciclo de
mobilizações que acompanhou o segundo mandato do presidente Lula e que prosseguiu
nos últimos anos. No ciclo iniciado em junho deste ano, se desencadeou uma
brutal repressão por parte das Polícias Militares em várias unidades da
federação, particularmente violenta na cidade de São Paulo, em 13 de junho. Na
capital paulista o MPL assumiu a posição de porta voz do movimento, cumprindo
razoavelmente bem o papel com legitimidade.
Para o mal,
a súbita mudança de atitude da imprensa corporativa, que até o mesmo dia 13
resumia todos os protestos que ocorriam no Rio e na capital paulista como “um
atentado ao direito de ir vir”, e de uma hora para outra se passou para
defensora das “manifestações”. Para o mal mesmo, e grande parte da
desorientação da esquerda socialista decorre da incompreensão do peso que esse
“partido”, a imprensa (no sentido gramsciano), pode ter em situações como
essas.2 Não
se tratou de uma mera mudança de posição, para supostamente seguir “a opinião
de seus leitores”, como se essa própria imprensa não estivesse formulando essa
mesma opinião. Muito menos não foi só um problema corporativo, pelo fato de
jornalistas terem sido alvo da repressão policial, embora esse seja um elemento
que não possa ser desconsiderado.
A imprensa
corporativa não só mudou de posição, mas foi capaz de capturar a consciência de
parcelas significativas das massas populares que saíram às ruas na semana de 17
a 21 de junho, que o fizeram com cartolinas onde se podia ler: “Abaixo a PEC
37”, “Pelo fim da corrupção”, “Diminuição do número de ministérios”, além de
fanfarronices ingênuas como “Saímos do Facebook”, “O Gigante Acordou” e “Não é
só pelos 20 centavos”. Na súbita e maliciosa mudança na cobertura da imprensa,
onde até então se viam “vândalos”, passou-se a para uma sorrateira divisão
entre “pacíficos” x “vândalos”, ao mesmo tempo em que Arnaldo Jabor promovia
uma ridícula autocrítica, pois se na semana anterior havia comparado os
manifestantes a “criminosos do PCC”, agora lhes pedia para que fossem as ruas
“contra a PEC 37”, “contra a corrupção” e “o número de ministérios”.
O
“argumento PCC” foi também convocado pela Folha de São Paulo, em editorial do
dia mesmo 13 de junho, onde praticamente pedia que a PM do governador Alckmin
agisse com violência contra os manifestantes. Com a credibilidade em baixa, a
revista VEJA alterou sua linha já na edição de domingo, dia 16, onde não só
explicitamente se passava para incentivadora dos protestos, como estampou
imagens de “depredação” de vitrines em sua capa. Era quase um convite à
insurreição, que obviamente a revista queria direcionar contra o governo
federal.
Para
completar, a insistência com a que a mídia relatou episódios isolados em que no
dia 17 bandeiras vermelhas de partidos de esquerda foram rejeitadas por parte
dos manifestantes, parece ter dado uma certa base social para uma ação
organizada por grupos de extrema-direita que em todo o país, no dia 20 de junho
(como ocorreu na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro), arrancaram
bandeiras vermelhas e espancaram manifestantes.
Não se
tratava da expressão de um evidente desgaste das organizações político
partidárias, resultante inclusive do fato do país ser governado desde de 2003
pelo PT. A própria vaia e o pedido de que as bandeiras fossem abaixadas pode
expressar apenas esse sentimento de desilusão com o sistema político
partidário, embora no fundo expresse uma compreensão política rebaixada. Outra
coisa, bem diferente, é a defesa da violência contra os partidos de esquerda,
como fizeram esses grupos de extrema-direita em conluio com policiais à
paisana, apoiados pelas colunas do Merval Pereira em O Globo.
As portas
do inferno se abriram: a extrema-direita veio a luz, a esquerda apanhou e em
alguns casos foi expulsa das manifestações, como ocorreu com o próprio MPL, que
junto com as colunas dos partidos socialistas (PSTU, PCB, coletivos do PSOL,
LER-Qi e outros grupos), foi convidado a ser retirar do centro de São Paulo,
enquanto uma massa desorientada cantava o Hino Nacional em frente ao edifício
da FIESP, e fuzileiros navais em trajes civis atacavam o Palácio do Itamarati
em Brasília, uma imagem que nos leva no túnel do tempo ao período anterior ao
Golpe de 1964.3
A revogação
dos aumentos dos preços das passagens em São Paulo e no Rio, ainda no início da
noite do dia 19, parecia deixar as portas abertas para que o movimento fosse
agora apresentado como “sem pauta”, ao mesmo tempo e que era pautado pela
própria imprensa. De certo modo, o slogan espontâneo “não é só pelos 20
centavos” abriu caminho para que as pautas apresentadas pela imprensa fossem
agora apresentadas como o motivo da revolta geral.
A
desorientação que se abateu nos círculos da esquerda após o 20 de junho não foi
de qualquer monta. De gente falando que tinha realmente de deixar as bandeiras
em casa e ir pro meio da massa, à setores na oposição de esquerda ao Lulismo
clamando por uma aliança com o PT e o PCdoB (até PSB e PDT em alguns casos),
tudo se propôs naqueles dias. Em círculos minoritários uma avaliação mais
exótica parecia confortar alguns grupos que haviam sido expulsos das
manifestações: foram feitas pela “classe média”, não pela classe trabalhadora.
Alguns desses ficaram esperando quase messianicamente pela “entrada da classe
trabalhadora”, como se a mesma não tivesse tido nenhuma participação até o
momento. Tal argumento foi desmontado por uma pesquisa de opinião feita no dia
20 de junho durante a manifestação do Rio onde se constatou que 70% das pessoas
podem ser definidas como pertencentes à classe trabalhadora, e não uma “classe
média” (BRAGA, 2013).
Outros
preferiam dourar a pílula, e comprar o discurso udenista do século XXI, de que
“a maior ameaça à democracia” era a “PEC 37”, a “corrupção” e até a “quantidade
de ministérios no governo Dilma”. Parecia que só era necessário apensar termos
mais à esquerda nessa “agenda udenista” e, como passe de mágica, a consciência
das massas pudesse ser caracterizada como “avançando”.
A questão é
que, não obstante todos os percalços, foi a esquerda que conseguiu voltar as
ruas nas semanas seguintes, e foi não outra coisa senão a esquerda que promoveu
duas massivas manifestações no fim da Copa das Confederações, tornando a
insatisfação popular com os gastos astronômicos dos governos com estádios um
clamor nacional. As cenas da classe média desfilando ao lado dos Caveirões e
posando para fotos com agentes do BOPE acabavam por realçar a linha divisória
de classe que separa aqueles que querem um Estado policial implantado nas áreas
mais pobres da cidade, daqueles que se opõem ao mesmo.
O movimento
no Rio: FORA CABRAL!
Não é
exagero afirmar que foi a campanha pela derrubada do governador Sérgio Cabral
que permitiu que a esquerda voltasse a iniciativa nas ruas. Mas a esquerda não
é mais a mesma coisa desde o início das Jornadas de Junho. Agora temos nas ruas
jovens jornalistas que transmitem ao vivo o que se passam nas manifestações,
desmascarando armações da polícia, como no já famoso episódio do dia 22 de
julho, no primeiro dia da visita do Papa Francisco, onde conseguiu-se
demonstrar que foi um agente infiltrado (P2) que jogou um coquetel molotov
contra a própria Tropa de Choque. O episódio livrou o manifestante Bruno Telles
das acusações que a Polícia Militar destilaram contra o mesmo, resultando no
arquivamento do processo, não sem antes fazer até o Jornal Nacional da Globo
apresentar vídeos que já circulavam na internet e que provavam a armação da
polícia.4
Além disso,
agora os protestos passaram a contar com colunas de ativistas com indumentária
preta e disposição para o enfrentamento com a polícia, e não mais continuar a
tradição de apanhar da PM e ficar por isso mesmo. Os Black Blocs viraram capa
de revista e objeto das mais bisonhas reportagens por parte de O Globo, Folha e
a revista Época, onde se sugeriu que eles estavam treinando “técnicas de
guerrilha” no Mato Grosso (Ahh?) e que recebiam treinamento de “ex-integrantes
dos Tupamaros”. Polêmicas no interior da esquerda, como não poderia deixar de
acontecer, têm sido importantes, mas é preciso não deixar que os sectarismos
corroam as possibilidades muito mais fecundas de uma atuação em conjunto, e
sobre esse ponto deixo apenas uma pequena nota.
O problema
maior é acreditar que as únicas forças progressistas existentes na realidade
são aquelas que as organizações A, B ou C impulsionam. Isso por que, de saída,
o que se perde de vista é um entendimento totalizante. A essa altura da crise,
dedicar esforços em combater forças que no campo anti-sistêmico combatem na
mesma trincheira contra a ordem é um esforço inócuo, e não contribui em nada
para o avanço da consciência das massas. A origem do erro é pressuposição de
que seja possível suspender a existência de experiências emergentes que por
acaso estejam fora do campo de forças de organização A, B ou C.
Melhor
seria apostar no crescimento de um movimento que ocorre numa época histórica em
que a fragmentação na esquerda socialista é um elemento que não parece ter
resolução num prazo médio. E aqui talvez é que esteja o grande debate: que tipo
de organização será capaz de absorver o desenho das lutas emergentes? Como
constituir uma alternativa de poder dos trabalhadores? Ou seja, como intervir
politicamente de modo a impulsionar a auto-organização dos trabalhadores? A
essa altura nada que não seja unitário é capaz produzir efeitos progressistas
frente aos desafios.
Mas unidade não pode significar
ausência de debate entre as posições divergentes no interior da esquerda
socialista. A idéia de que a polêmica em si deva ser vista com reserva, remete
aos piores momentos da experiência socialista no século XX, o stalinismo.
Bibliografia:
BENSAÏD, Daniel. La discordance des temps. Essais sur les crises, les
classes, l’histoire. Paris: Les Éditions de la Passion, 1995.
BRAGA, Ruy. “Sob a sombra do precariado.” In. Cidades Rebeldes. São
Paulo: Carta Maior e Boitempo, 2013.
BRITO, Felipe & ROCHA, Pedro (orgs.). Até o último homem. Visões
cariocas da administração armada da vida social. São Paulo: Boitempo, 2013.
CARCANHOLO, Marcelo Dias. “Crise atual da economia capitalista: lógica e
perspectivas.” Antítese, Goiânia, n.8, pp.41-60, 2010.
CARCANHOLO, Reinaldo & SABADINI, Maurício. “Capital ficticio y
Ganancias fictícias.” Herramienta, Buenos Aires, v.37, p.59-79, 2008.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. III. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999.
HOBSBAWM, Eric. “Karl Marx e o movimento operário inglês.” In.
Revolucionários. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.101-113.
MARQUES, Rosa & NAKATANI, Paulo. O que é capital fictício e sua
crise. São Paulo: Brasiliense, 2009.
MARX, Karl. O capital. Livro III. São Paulo: Abril Cultural, 1983,
volumes I e II.
MOVIMENTO PASSE LIVRE DE SÃO PAULO, “Não começou em Salvador, não vai
terminar em São Paulo.” Cidades Rebeldes. São Paulo: Carta Maior e Boitempo,
2013.
OLIVEIRA, Francisco; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (orgs.) Hegemonia às
avessas. São Paulo: Boitempo, 2010.
UNITED STATES
GOVERNMENT ACCOUNTABILITY OFFICE. Federal Reserve System. Opportunities Exist
to Strengthen Policies and Processes for Managing Emergency Assistance. July 2011, p.131. Disponível emhttp://www.gao.gov/new.items/d11696.pdf
Notas:
1 Na
seção quinta deste livro (MARX, 1983) Marx desenvolve os temas relacionados ao
que vulgarmente se chama de “esfera financeira”, da divisão do mais-valor em
lucro empresarial e juros, do sistema bancário e do capital fictício, conceito
cuja centralidade para a atual fase de desenvolvimento capitalista tem sido
apontada por diversos autores (p.ex. CARNHOLO & SABADINI, 2008; MARQUES
& NAKATANI, 2009; CARCANHOLO, 2010).
2 A
importância da imprensa (e da mídia em geral) em situações onde existe crise de
representação dos partidos tradicionais foi discutida por Gramsci em um de seus
Cadernos do Cárcere (1999) “Em um certo ponto de sua vida histórica, os grupos
sociais se separam de seus partidos tradicionais, isto é, os partidos
tradicionais naquela dada forma organizativa, com aqueles determinados homens
que os constituem, representam e dirigem, não são mais reconhecidos como sua
expressão por sua classe ou fração de classe. Quando se verificam estas crises,
a situação imediata torna-se delicada e perigosa, pois abre-se o campo às
soluções de força, à atividade de potências ocultas representadas pelos homens
providenciais ou carismáticos. Como se formam estas situações de contraste
entre representantes e representados, que, a partir do terreno dos partidos
(organizações de partido em sentido estrito, campo eleitoral-parlamentar,
organização jornalística), reflete-se em todo o organismo estatal, reforçando a
posição relativa do poder da burocracia (civil e militar), da alta finança, da
Igreja e, em geral, de todos os organismos relativamente independentes das
flutuações da opinião pública?” (CC, 13, §23: 60).
3 Todavia
é claro que só os muito delirantes poderiam conceber que esta comparação
pudesse embasar as muitas teorias que surgiram naquela altura de que o governo
do PT pudesse ser alvo de um golpe, tal como em 1964. Em primeiro lugar, os
cenários são completamente diferentes e não só pela determinação internacional
da Guerra Fria, mas pelo fato de naquela altura o governo reformista de Goulart
possuir importantes pontos de atrito com o capital estrangeiro (como na Lei
sobre a Remessa de Lucros), enquanto que as relações do governo do PT com o
grande capital até agora tem sido quase monogâmicas (Cf. OLIVEIRA, BRAGA &
RIZEK, 2010)
4 Correndo
atrás para restabelecer sua credibilidade, a Rede Globo não se furtou a
apresentar os vídeos que já circulavam pela internet como quase como um furo de
reportagem.
Demian
Melo in
http://www.revistahabanero.org/v4/2013/08/22/a-esquerda-liquida-e-a-jornadas-de-junho-as-razoes-da-crise/
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